quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Disseste-me que queres que te escreva uma carta de amor...

Uma carta de amor encomendada assim, de rompante, sem razão aparente, sem papel de escrita ou pena com que escrever... (mas que pena, mas qual pena, se de amor se trata e de palavras escritas se fará a história?)

Uma carta deve ser coisa com endereço acordado, ou não?
Uma carta que sabe ter à espera, lá do outro lado, alguém que a vai ler, é uma carta com alvo conhecido e exterior a quem escreve, será?

Mas uma carta de amor escrita num teclado, por bonito e luminoso que seja o teclado, não é uma carta de amor como as que o Pessoa afirmava serem necessariamente ridículas... ou, pelo contrário, é mais ainda?
Uma carta que se escreve a medo, devagarito, a enredar o início e a adiar o começo. A medo e cheia de medo. Medo do medo e medo de não saber largar a prisão de ter esse medo... de experimentar o amor.

Uma carta de amor tem de começar a dirigir-se a nós mesmos, a quem se escreve e se entrega nessa vida paralela a que chamarão (os raros que possam reconhecê-lo) amor.
Como poderá escrever-se uma carta de amor, alguém que não conheça verdadeiramente isso a que assim chamam?
Poderei, eu, escrever uma carta de amor? Eu, que passo a vida a apaixonar-me subitamente pelo mais ínfimo pormenor da personalidade de tantas pessoas, os sorrisos, os olhos, os gestos, as palavras... dos outros.

Disseste-me que queres que te escreva uma carta de amor...

Fá-lo-ei. Aliás, é certo que não paro enquanto não tiver elaborado uma carta perfeita, uma carta cheia, uma carta que conte do amor e que me conte pelo amor. Vou escrever-te uma carta que me escreverá a mim.

Uma carta de amor não tem de ser um extracto de impressões de alguém por alguém ou de alguém por alguma coisa. Tem de ser um pedaço, um momento, o instante, em que alguém se vê contado em palavras que são raras, em letras largadas à solta, como se o vento ao papel chegasse e as pudesse fazer voar.

Uma carta de amor é uma folha de registo de alguém sobre si. É uma folha de intenções da pessoa que se escreve, ali.
Uma carta de amor feita escrita por alguém que não lhe sabe reconhecer a cor, é uma aventura, uma evasão, um salto, uma corrida, uma batida mais descompassada do coração.

Sei lá o que será isso... essa coisa tão cantada, esse estado dito encantado, esse tempo maluco nos descaminhos dos dias e das vidas e das histórias e das lembranças de toda a gente... também das minhas?

Uma escrita feita tarefa de descoberta... talvez lhe encontre o fio e recomponha a linha torcida em que se transformou isto que vem sendo a minha escrita.

Uma carta, qualquer que seja o seu ponto de partida, deve ter sempre uma imagem associada, um símbolo, uma impressão, uma cor, uma música, um estado de alma que se conte em mais que uma expressão.

Uma carta de amor tem, imprescindivelmente, a lua cheia a iluminá-la. Hoje é noite de lua louca, de lua gorda, de lua feita luz. Hoje é, inevitavelmente, a noite certa para escrever esta que será, pela certa, a última carta antes de completar mais um ano, a primeira que se faz de mote alheio.

Toda a gente já escreveu cartas destas, as ditas ridículas.
Toda a gente já sentiu, pelo menos de levezinho, isso a que alguém convencionou dizer ser d’o amor.
Toda a gente já experimentou, pelo menos no rompante breve, o sufocar do olhar ali num exacto instante.
Toda a gente?

1 comentário:

Sr. Jeremias disse...

Pelo menos toda a gente pensa que sim até ao dia em que aparece O "sufocar do olhar ali num exacto instante".

A mais bela carta de amor. ###-##